quarta-feira, 25 de abril de 2007


CANTAR A LIBERDADE


Antes

Mesmo na noite mais triste / em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não
(Manuel Alegre, Trova do vento que passa)

Aparentemente reina a normalidade no País do "orgulhosamente sós" salazarista. Faltam dois dias para a revolução mas nada parece acontecer em Portugal. Os jornais enchem páginas com a actualidade internacional.


Durante


Cobre-te canalha / Na mortalha / Hoje o rei vai nu
Os velhos tiranos / De há mil anos / Morrem como tu
Abre uma trincheira / Companheira / Deita-te no chão
Sempre à tua frente / Viste gente / Doutra condição
Ergue-te ó Sol de Verão / Somos nós os teus cantores /
Da matinal canção / Ouvem-se já os rumores /
Ouvem-se já os clamores / Ouvem-se já os tambores
Livra-te do medo / Que bem cedo / Há-de o Sol queimar

E tu camarada / Põe-te em guarda / Que te vão matar?
(Zeca Afonso; canção: Coro da Primavera)

Madrugada de quinta-feira, 25 de Abril. Portugal dorme. Num posto de comando clandestino, formado no Regimento nº 1 na Pontinha, em Lisboa, há um aparelho de rádio sintonizado na estação da Rádio Renascença. Á sua volta alguns oficiais das Forças Armadas esperam ansiosos ouvir a senha que confirmará o curso irremediável da revolução planeada. Ela virá sob a forma de uma canção: "Grândola, Vila Morena, Terra da fraternidade, O povo é quem mais ordena, Dentro de ti, ó cidade", do cantor José Afonso. Passa meia hora da meia-noite quando a rádio a põe no ar. Por todo o país iniciam-se movimentações militares.


Depois

Ei-la a cidade envolta em dor e bruma / Ei-la na escuridão serena resistindo/
Hierática Estranha Sem medida / Maior do que a tortura ou o assassínio/
Ei-la virando-se na cama / Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva/
seminua sensual e no entanto pura / Noiva e mãe de três filhos Namorada/
e prostituta Virgem desamparada / e mundana infiel Corpo solar desejo/
amor logro bordel soluço de suicida/
Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma / em praças ruas becos boîtes e monumentos/
Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada / ignóbil e miraculosamente erecta/
branca quase feliz quase feliz.
(Daniel Filipe, A invenção do amor)

Quem num impulso de pânico, ao saber da revolução, açambarcou pão comeu-o seco no dia seguinte. Pois, sem grandes sobressaltos, a vida quotidiana voltava à normalidade na manhã de 26 de Abril.



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